Decisão proferida pela Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça no RHC 70.141/RJ, julgado em 07/02/2017 (leia a íntegra do acórdão).
Confira a ementa:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. POSSE E PORTE ILEGAL DE ARMAS DE FOGO E MUNIÇÕES DE USO PERMITIDO. AUSÊNCIA DE CERTIFICADO FEDERAL. DELEGADO DE POLÍCIA CIVIL. IRRELEVÂNCIA. CONDUTA TÍPICA. TRANCAMENTO DO PROCESSO IMPOSSIBILIDADE. RECURSO NÃO PROVIDO.
1. O trancamento do processo em habeas corpus somente é cabível quando ficarem demonstradas, de plano, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria ou a existência de causa extintiva da punibilidade.
2. É típica e antijurídica a conduta de policial civil que, mesmo autorizado a portar ou possuir arma de fogo, não observa as imposições legais previstas no estatuto do Desarmamento, que impõem registro das armas no órgão competente.
3. É incabível a aplicação do princípio da adequação social, segundo o qual, dada a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal, não se pode reputar como criminosa uma ação ou uma omissão aceita e tolerada pela sociedade, ainda que formalmente subsumida a um tipo legal incriminador. Possuir armas de fogo e munições, de uso permitido, sem certificados federais e que só vieram a ser apreendidas pelo Estado após cumprimento de mandado de busca e apreensão, não é uma conduta adequada no plano normativo.
4. Por fim, sob a ótica do princípio da lesividade, o recorrente não preenche os vetores já assinalados pelo Supremo Tribunal Federal para o reconhecimento do princípio da insignificância, tais como a mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada, ante os armamentos apreendidos (dois revólveres calibre 38 e 48 munições).
5. Recurso não provido. (RHC 70.141/RJ, Rel. Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, SEXTA TURMA, julgado em 07/02/2017, DJe 16/02/2017)
Leia a íntegra do voto do Ministro Rogerio Schietti Cruz:
VOTO
O SENHOR MINISTRO ROGERIO SCHIETTI CRUZ (Relator):
I. Contextualização e alegações essenciais do recorrente
Conforme relatado, a denúncia imputa ao recorrente a prática de dois crimes: posse irregular e porte ilegal de arma de fogo de uso permitido. Tais condutas consistiriam, em síntese, no seguinte:
1) posse e manutenção, em sua residência e sem autorização ou em desacordo com determinação legal, de um revólver registrado apenas na Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos do Rio de Janeiro, em nome do corréu, além de 48 munições;
2) porte, mesmo na condição de Delegado de Polícia, sem autorização e em desacordo com determinação legal, de um revólver igualmente registrado apenas na Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos (DFAE) e em nome do corréu.
O recorrente sustenta, basicamente, que além de as armas serem registradas na Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos do Rio de Janeiro (DFAE), ostenta a condição de Delegado de Polícia, o que lhe autorizaria, conforme art. 33 do Decreto n. 5.123/2004, possuir ou portar arma de fogo, acessório ou munição.
Aduz, nessa perspectiva, que a “tipicidade material […] não se encontra presente na espécie em julgamento, afinal, a arma de fogo de uso permitido encontrada na casa do paciente era registrada em nome de Getúlio (Doc. 5), de forma que o poder público detinha, como sempre deteve, completo conhecimento/ciência da existência do armamento em questão, podendo rastreá-lo se necessário” (fl. 74).
Afirma que o local em que o armamento se encontrava era de difícil localização (no interior de um closet, em uma gaveta fechada a chave e debaixo de papéis) e que se encontrava descarregada ao lado da munição que seria compatível com outra arma também apreendida, de modo que não haveria ofensa ao bem jurídico tutelado.
Por fim, assere que “enquanto de Polícia Civil respeitado e com longa carreira de bons serviços prestados à sociedade fluminense, de nada lhe serviria a arma de terceiro e, em que pese registrada em nome de seu amigo Getúlio, o dispositivo ainda continha sua numeração e registro, sendo evidente a boa-fé do paciente em não utilizar a arma de qualquer forma que não estivesse nos ditames da lei, mas sim para, sempre de boa-fé, restituí-la ao poder público, consoante o art. 32 da Lei nº 10.826/2003” (fl. 76).
II. Excepcionalidade do trancamento do processo
Conforme reiterada jurisprudência desta Corte, na linha do que dispõe o art. 395 do CPP, o trancamento do processo, por ser medida excepcional, somente possível quando evidenciadas, ictu oculi, a absoluta deficiência da peça acusatória ou a ausência inconteste de provas (da materialidade do crime e de indícios de autoria), bem como a atipicidade da conduta ou a existência de causa extintiva da punibilidade.
III. Requisitos legais para adquirir e possuir arma de fogo de uso restrito
Em observância ao princípio da legalidade, foi promulgada a Lei n. 10.826/2003, depois de várias iniciativas em prol do desarmamento. A mens legis do denominado Estatuto do Desarmamento foi proteger a incolumidade pública, por meio de tipos penais e de outros dispositivos destinados ao maior controle de armas de fogo pelo governo.
Nesse cenário, foi instituído o Sistema Nacional de Armas, órgão competente para, entre outras atividades, identificar as características e a propriedade de armas de fogo. O art. 3° da Lei n. 10.826/2003 dispõe ser “obrigatório o registro de arma de fogo no órgão competente”. Para adquirir arma de fogo, o interessado deverá declarar a efetiva necessidade e preencher vários requisitos legais, entre eles a comprovação de idoneidade – mediante apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal – e a apresentação de documentos comprobatórios de ocupação lícita, residência certa, capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio do artefato.
Mesmo depois de cumpridos os requisitos legais e expedida a autorização de compra de arma de fogo pelo SINARM, deverá ser requerido o certificado de registro, emitido pela Polícia Federal. O certificado federal – e não a autorização do SINARM – conferirá ao titular da arma de fogo o direito de possuí-la no interior de sua residência ou domicílio, ou dependência desses, ou, ainda, no local de trabalho, desde que seja ele o titular ou o responsável legal pelo estabelecimento.
A lei, ainda, é expressa ao determinar que a idoneidade do proprietário, a apresentação de documentos comprobatórios de ocupação lícita e de residência e, por fim, a capacidade técnica e a aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo deverão ser comprovadas periodicamente, para a renovação do Certificado de Registro de Arma de Fogo.
É claro, portanto, que o cidadão previamente autorizado pelo SIARM, ao adquirir arma de fogo de uso permitido, somente poderá manter o artefato em sua residência mediante certificado expedido pela Polícia Federal, documento temporário e sujeito ao preenchimento de requisitos legais, que deverão ser comprovados periodicamente para fins de revalidação.
No Portal da Polícia Federal, no serviço de perguntas e respostas do site, há expresso esclarecimento de que “possuir, mesmo que em sua residência, uma arma de fogo sem o registro federal válido é crime, passível de pena de detenção de 1 a 3 anos e multa (art. 12 da Lei n. 10.826/2003). Portanto, deve-se proceder à renovação do registro ou entregar, voluntariamente, sua arma de fogo na Campanha do Desarmamento, não sofrendo nenhuma punição” (Disponível em: pergunta n. 8).
IV. Tipicidade formal e tipicidade material
Estabelece o art. 12 do Estatuto do Desarmamento ser proibido “possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda, no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa”. E o 14, o seguinte: “Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar”
Em análise hipotética, existe correspondência dos fatos narrados na denúncia com as fórmulas legais, o que evidencia, ao menos, a tipicidade formal das condutas. De fato, o paciente foi denunciado por possuir e portar arma de fogo, além de munições, sem o certificado expedido pela Polícia Federal, embora tais armas estivessem registradas na Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos do Rio de Janeiro (DFAE), responsável pelo registro e pelo controle de armas apreendidas e acauteladas naquele estado. Isso porque o Estatuto do Desarmamento estabelece a obrigatoriedade de registro perante a Polícia Federal e a necessidade de autorização do Sinarm.
É de ser afastada, ainda, a alegação de que a condição de Delegado de Polícia lhe autorizaria a posse e o porte das armas, pois essa autorização deve ser complementada com a necessidade do cumprimento das formalidades legais previstas na Lei 10.826/2003. O fato de ser policial não o habilita a portar ou possuir arma sem registro no órgão competente. E, ainda, quanto ao fato de que as armas seriam entregues espontaneamente à Polícia Federal na campanha de desarmamento, destaco, neste particular, o que disse o relator na origem (fl. 54):
A alegação de ser o Paciente delegado de polícia e, portanto, apto a portar armas com conhecimento e técnica, por si sós, não o credencia a ignorar seu dever funcional de entregar armas coletadas pela campanha do desarmamento como alegou, tampouco alegar mero esquecimento ou compromissos outros para não o fazer por dois anos, e ainda rogar ser considerada atípica sua conduta.
Sob distinta angulação, observo que o fato foi praticado no período de 2013 a 2015, após a vacatio legis prevista para regularização ou entrega de arma de fogo, mediante indenização; não se aplica, portanto, a causa de extinção da punibilidade do art. 32 da Lei n. 8.136/2003, pois não houve entrega espontânea do armamento.
Logo, a conduta delineada, além de formalmente típica, é antinormativa. Eugenio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangeli afirmam que “o juízo de tipicidade não é um mero juízo de tipicidade legal, mas que exige um outro passo, que é a comprovação da tipicidade conglobante, consistente na averiguação da proibição através da indagação do alcance proibitivo da norma, não considerada isoladamente, e sim conglobada na ordem normativa” (Manual de direito penal brasileiro, v. 1: parte geral. 7. ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2007).
Por fim, não vejo possível a aplicação, à hipótese concreta, do princípio da adequação social, formulado por Hans Welzel, vetor geral de hermenêutica, segundo o qual, dada a natureza subsidiária e fragmentária do direito penal, não se pode reputar como criminosa uma ação ou omissão aceita ou tolerada pela sociedade, ainda que formalmente subsumida a um tipo legal incriminador. Sem embargo de opiniões contrárias, mesmo na condição de Delegado de Polícia, possuir armas de fogo e munições, de uso permitido, sem registro no órgão competente e que somente foram descobertas após cumprimento de mandado de busca e apreensão exarado pelo Juízo da 16ª Vara da Comarca do Rio de Janeiro, não é uma conduta socialmente tolerável e adequada no plano normativo penal.
Por fim, sob a ótica do princípio da lesividade, tem-se, aqui, o perigo à incolumidade pública representado pelo agente que possui arma de fogo ou somente munições sem certificado. Em função dos próprios objetivos da Lei do Desarmamento, o postulado da insignificância deve ser aferido caso a caso, de forma excepcional, para verificar a presença dos vetores já assinalados pelo Supremo Tribunal Federal, tais como a mínima ofensividade da conduta, nenhuma periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, o que não reputo configurado na espécie, seja pelos armamentos apreendidos (dois revólveres calibre 38 e 48 munições), seja pela notícia veiculada pela própria Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos de que a ultima atualização relativa ao prontuário da arma em seus registros datava de 1999 (fl. 93), a indicar que o armamento circulou anos sem registro no órgão competente.
Penso, sem prejuízo de que o aplicador do direito, caso a caso, utilize vetores gerais de hermenêutica para restringir o teor literal do tipo penal que, em situações peculiares, pode alcançar condutas socialmente admissíveis ou penalmente insignificantes, que as alegações do recorrente não merecem ser acolhidas.
V. Dispositivo
À vista de todo o exposto, nego provimento ao recurso ordinário.
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